sábado, 14 de agosto de 2010

Matéria Veja Rio: Uma geração que solta a voz

Uma geração que solta a voz

Mercado crescente de musicais incentiva jovens atores a investir em aulas de canto e revela talentos promissores
Letícia Pimenta
Fotos Selmy Yassuda

Adornado com longos cabelos loiros e olhos azuis, o rosto da tímida Malu Rodrigues não dá nenhuma pista do que a adolescente ao centro da foto acima é capaz de fazer com a voz. Quando sobe ao palco, a atriz-cantora emite notas poderosas. Fluminense de Resende, prestes a completar 16 anos, Malu contabiliza de carreira quase o mesmo tempo que tem de vida. Descoberta em um shopping por Marlene Mattos, então empresária de Xuxa, ela estreou aos 2 anos, em um especial da apresentadora. Engordou seu currículo com participações na televisão, no cinema e no teatro, sustentadas por aulas sistemáticas de canto, dança e interpretação. Em 2003, aos 10 anos, Malu ganhou seu primeiro papel em musical, na montagem de A Arca de Noé, dando início a uma promissora trajetória no gênero. A partir de sexta-feira (21), ela será a protagonista do clássico O Despertar da Primavera, do alemão Frank Wedekind, escrito em 1891. O espetáculo carioca dirigido por Charles Möeller e Cláudio Botelho é baseado na recente versão da Broadway, um eletrizante musical de 2006, vencedor de oito prêmios Tony, o mais importante do teatro americano.

A única exigência dos autores Duncan Sheik e Steven Sater era que o elenco brasileiro fosse de jovens atores com idade próxima à dos personagens. Em cena, eles experimentam a descoberta da sexualidade sob um ambiente de forte repressão familiar e muitos tabus. Malu e dezoito de seus colegas de palco, com idade entre 16 e 25 anos, foram selecionados em audições promovidas no fim de 2008 e em abril deste ano. São surpreendentes as performances em ensaios no Teatro Villa-Lobos, onde o espetáculo ficará em cartaz. Os escolhidos são representantes de uma novíssima geração que vem se aprimorando no gênero, cada vez mais valorizado. Essa turma pode ser vista aos borbotões em produções do porte de Hairspray, em cartaz no Oi Casa Grande, e Clandestinos, de João Falcão, que volta ao palco em setembro. Em ambas, houve cerca de 3 000 inscritos para os testes. “Eles sabem mais sobre as peças do que eu. São muito disciplinados”, afirma Botelho. “Fazem aula de canto com os melhores professores e chegam às audições com uma preparação incrível.”

Malu é um ótimo exemplo de jovem “cantriz”. Tem potência vocal, noções de dança e interpretação e dedicação espartana ao trabalho. Antes de O Despertar da Primavera, ela integrou o elenco de 7 – O Musical e de A Noviça Rebelde, ambos de Möeller e Botelho. Agora colhe os frutos da dedicação interpretando Wendla. “Como eles já tinham confiança em mim, eu pedi para fazer o teste da protagonista”, explica a atriz, que estudou o papel durante oito meses antes da audição. Pelo forte conteúdo da história, que aborda temas como gravidez na adolescência, homossexualismo, suicídio e violência doméstica, Malu foi emancipada para evitar eventuais problemas com o Juizado de Menores.


Dos candidatos inscritos, cerca de 500 passaram na primeira seleção, cujo processo ocorreu à moda da geração Orkut. Os adolescentes se apresentaram em vídeos no site de relacionamentos MySpace. Após as audições saíram os dezenove aprovados, apenas quatro deles com experiência anterior. Há atores do Rio, de São Paulo, Campinas e Porto Alegre. “Eu não abro mão da audição. Faço em todos os nossos espetáculos”, avisa Charles Möeller. “É uma forma de dar oportunidade a cada um e estimular os veteranos a se aprimorar.”

A peneira de Möeller e Botelho revelou nomes como o excelente Rodrigo Pandolfo, 25 anos, que ganhou um dos papéis principais, o do atormentado Moritz. Novato no gênero, ele tem uma carreira sedimentada no teatro – foi indicado ao Prêmio Shell deste ano, na categoria ator, pela comédia Cine-Teatro Limite. Afinado, mas sem técnica vocal, começou a ter aulas de canto. “No início isso me tirava o sono”, conta. “Mas ganhei confiança e agora estou apaixonado por musicais.” Pierre Baitelli, escalado para o protagonista Melchior, par romântico de Wendla, viveu situação semelhante. Estudante de teatro desde os 8 anos, o jovem de 25, nascido em Petrópolis, fazia aulas de canto como hobby. “O começo foi um pesadelo”, lembra. “Não sou cantor. Isso me exige uma concentração extra, que não preciso ter nem na dança, nem na interpretação.”

O canto é o primeiro investimento dos interessados em ingressar no gênero. “Quem for capaz de produzir a nota certa é um candidato aos musicais”, diz a atriz e professora Esther Elias, supervisora vocal de O Despertar da Primavera. Embora a expansão do mercado seja realidade, profissionais veteranos atestam que há muito a investir na formação. “Ainda aprendemos fazendo”, avalia Soraya Ravenle, com dezenove musicais no currículo. “O que falta no Brasil são escolas como as lá de fora, que concentram aulas de canto, dança, interpretação e teoria musical”, sugere o coreógrafo Alonso Barros. Claudia Raia recorda a precariedade dos espetáculos de quinze anos atrás. “Quando começávamos a produzir, mal dava para montar um elenco”, compara a atriz, que estreia no mês de outubro, em Curitiba, o musical Pernas pro Ar. “Hoje conseguimos seis ou sete elencos de qualidade.” Qualidade que vem à custa de trabalho e disciplina, diz Möeller. Significa dormir cedo, cuidar da voz e estudar muito. “O teatro não é uma profissão dos deuses”, explica. “É um ofício para atletas de elite.”

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